segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009



No dia em que lhe caiu um rebite em brasa dentro do fato-macaco, Brenibúzio Lopes deixou de acreditar em Deus.

Enfim, para dizer a verdade, deixar de acreditar em Deus, não foi bem assim. O que acontece é que passou a ter uma outra perspectiva sobre aquilo que se pode esperar de gente que opera por tão ínvios caminhos. Que diabo, levar c’um rebite em brasa dentro do fato à macaca (ele dizia assim…) é provação que nem Job provou, camano!

Nesse dia, porém, estava particularmente nervoso e desconfiado. E, pior que isso, achava que tinha boas razões para isso. Não saberia dizer porquê, nem como, nem coisa nenhuma dessas, mas sabia-o. Tinha a certeza. Todas as circunstâncias se conjugavam. Tudo batia certo, dentro de uma certa lógica absurda, a que já se iam habituando, de há uns dias, para cá.

Estava perdido nestes pensamentos, quando sentiu saudades de Alpiarça.

Sentiu que a porta se fechava atrás dele. Olhou pela janela e confirmou que assim era.

Do outro lado da sala ela ainda ali estava, como a vira, ao entrar. Pálida e despenteada, com uma colher de sopa na mão e a obra completa do Camilo Castelo Branco, na outra. Encostava-se à lareira tentando manter o equilíbrio, enquanto esticava os braços e a voz lhe saía rouca e sacudida, quase desagradável.

Encostado à enorme estante que cobria toda a parede, fingiu-se distraído, mastigando folhas de erva, que arrancava do velho manuscrito amarelecido e sujo. Não comia havia três dias, já. Nem um iogurte sequer, ou de morango. Sentia saudades de Alverca e isso dava-lhe fome.

Lá fora, pendurada no andaime, de camisola às riscas e calções de palhaço, uma anã comia torresmos à dentada, enquanto brincava com peixinhos da horta. Cresciam-lhe feijoeiros pelas pernas curtas.

Lá em baixo, na rua, uma trupe de cegos tocava uma música estúpida que cheirava a vinho azedo.

Fechou a janela e voltou para dentro da sala. A porta estava agora aberta. Nunca o conseguiria explicar. Nem de repente.

Ela, entretanto, acalmou-se. Deixara de agitar os braços e crescer o cabelo. Sentara-se a comer uma tigelada, enquanto lhe saíam pequenos ramos de buganvília pelas covinhas das bochechas. Fazia um barulho estranho a comer. Parecia um bando de pássaros assustados batendo as asas furiosamente. Aquele barulho assustava-o. E dava-lhe arrepios. E saudades de Almeirim.

Contudo, as buganvílias crescendo-lhe das bochechas e subindo em caracol caprichoso pela testa e metendo-se pelo nariz, pelas orelhitas e ferrando-lhe os espinhos acerados nas pupilas reluzentes e castas… a isso achava mimoso. Sentiu saudades de Abrantes e achou ridículo, sentir saudades de tantas terras começadas por A. Por isso, virou-se e deu-lhe um tiro no meio dos olhos. Quase nem gritou, ao cair desamparada por sobre a mesa dos licores. Uma pernada de buganvília ficou presa ao naperon, o que tornou a queda ainda mais aparatosa. Quando finalmente se estatelou ao comprido no chão, ainda disse Brenibúzio, com voz sumida, mas depois finou-se. Poupa-se assim, muito sofrimento, pensou e acalmou-se.

Do outro lado da janela, a anã fitava-o com ar comprimido. Deu dois passos em direcção à janela, com a intenção de a abrir e roubar os torresmos à anã. Mas parou a meio, refreado por um inexplicável instinto.

Voltou-se de novo para a porta, esperando secretamente vê-la fechar sozinha. Nada aconteceu. Avançou mais dois passos, agora em direcção à porta. Parou de novo. Pareceu vê-la mover-se. Os cegos, na rua tinham parado de tocar. O silêncio que enchia agora a sala só era entrecortado pelo mastigar dos torresmos da anã, do outro lado do vidro, atrás dele. Hesitou ainda um pouco, antes de levar a mão à cara. Decidiu-se, por fim. E, em boa hora o fez, que se tivesse hesitado mais dois segundos já lá não a apanhava.